Uma abordagem criativa e sustentável para enfrentar o problema dos sem teto
A maneira mais simples de mensurar o nível de impacto social de um projeto é pela analogia entre alimentar uma pessoa sem teto (causando impacto direto), alimentar centenas de sem teto (escalando o impacto direto) ou tirar essas pessoas das ruas, atacando a causa do problema (impacto sistêmico). O que encanta nas vilas de mini casas que a ONG Hope of the Valley está implantando em Los Angeles é que elas não apenas causam impacto sistêmico, mas ainda evitam aglomeração de pessoas em situação de rua nos albergues, o que vem fazendo dos centros de apoio social locais de alta disseminação do Coronavírus. Os 10 anos de história dessa ONG são uma aula de empreendedorismo social, resolvendo problemas, ajudando pessoas e ao mesmo tempo desenvolvendo um modelo de negócio sólido, que não é refém apenas de doações ou de contratos com o poder Público.
As chamadas “tiny houses“, última moda entre elites internacionais adeptas do minimalismo, já estão tirando das ruas centenas de pessoas em situação de risco na Califórnia. Em breve, serão milhares. O estado mais rico dos EUA, ironicamente, é o que mais sofre com a explosão dos “homeless”, pessoas que perderam tudo na crise imobiliária e financeira de 2008 e nunca conseguiram recompor suas vidas. Alguns vivem em trailers e vans, como mostra Nomadland, um dos favoritos ao Oscar de melhor filme de 2021. A maioria, entretanto, ocupa barracas de camping ou lonas esticadas nas praças e calçadas de várias cidades dos EUA. Algo cada vez mais comum também nas grandes metrópoles brasileiras.
Quando começou a apoiar a população de rua em Los Angeles logo após a explosão da crise, em 2009, a Hope of the Valley fornecia aos sem teto alimentação preparada por voluntários no salão paroquial de uma igreja. Nada mais tradicional. Um exemplo clássico de impacto direto, aquele que salva um ser humano hoje, aquece o coração de quem presta a ajuda, mas pode ser comparado a secar gelo, pois amanhã haverá fome novamente. O passo seguinte também foi tradicional: firmar parcerias com a prefeitura para implantar e administrar albergues em vários pontos da cidade. Assim, o número de pessoas atendidas foi crescendo, bem como a complexidade da operação e a dependência do esforço dos voluntários e dos contratos com o governo.
O pulo do gato veio quando os diretores da organização perceberam que, apesar de terem perdido suas casas, aquelas pessoas chegavam aos albergues com malas e carrinhos de supermercado cheios de roupas e objetos pessoais, tudo que sobrava de suas vidas. Depois de organizar algumas vendas esporádicas para gerar renda aos albergados, a Hope of the Valley alugou uma loja para montar um brechó e começou a pedir doações de roupas e objetos para a causa. O sucesso foi imediato. A chuva de doações por um lado, e de compradores ávidos por pechinchas de outro, levou a organização a expandir essa operação.
Hoje, a ONG possui uma rede de “thrift stores” nas municipalidades de Granada Hills, Santa Clarita, Simi Valley e Palmdale, que geram mais de um terço de seu orçamento anual de US$ 7 milhões. Combinando essas receitas com doações de empresas e pessoas físicas, além de contratos com prefeituras, a Hope of the Valley hoje administra uma dezena de abrigos e centros de apoio, alguns voltados exclusivamente para famílias, jovens ou idosos, além daqueles destinados aos sem teto em geral. Quem se interessar no “economics” da operação pode acessar neste link o demonstrativo financeiro do ano de 2019, publicado no formulário Tax Return Filing Instructions modelo 990, documento padrão da receita dos EUA para dar publicidade às finanças de organizações não governamentais.
Para uma organização social com uma história como essa, adaptar a modinha das “tiny houses” às necessidades urgentes de pessoas em situação de rua durante a pandemia do Coronavírus parece uma evolução natural. Cada casinha tem cerca de 9m2, duas camas, aquecimento e ar condicionado. A “Tiny Home Village” conta com refeitório ao ar livre, chuveiros, banheiros, lavanderia e área para os moradores deixarem seus cães. Ela oferece 3 refeições por dia aos albergados, que podem permanecer no espaço por até 6 meses. Durante esse período, além do apoio de assistentes sociais e psicólogos, recebem treinamento e apoio para recolocação profissional, de forma que possam reestruturar suas vidas sem voltar a viver nas ruas.
A Hope of the Valley está abrindo duas “Tiny Home Villages”. A primeira, localizada no Chandler Blvd., tem 39 casas e 85 leitos. A segunda, em Alexandria Park, terá 103 casas e 200 leitos. O plano é adicionar em breve mais 275 leitos. A estratégia de captação de recursos com pessoas físicas também é inovadora e segmentada, começando com valores bastante baixos e permitindo segmentar o destinatário da doação. Combina campanhas online como “Doe uma refeição” (a US$ 2 por refeição, começando em pacotes de US$ 48), “Doe para uma faixa etária“, “Patrocine uma Tiny Home” (em seis parcelas de US$ 500) e até uma lista de compras na Amazon para equipar mais casinhas.
O resultado de todo esse trabalho é traduzido em números de impacto: mais de 92 mil diárias/ano de abrigo aos sem teto e quase 300 mil refeições/ano servidas, além de 750 consultas e atendimentos médicos em 12 meses.