Há muitos prognósticos sobre quando nossas vidas voltrão ao normal. Alguns afirmam que o “normal” não existe mais. Outros acham que só retomaremos a atividade quando surgir uma vacina. Planos para o fim da quarentena em desenvolvimento por “think thanks” norte-americanos e a recém anunciada joint venture Apple/Google para incorporar rastreamento voluntário de nossos celulares indicam que o fim do isolamento só virá com a morte da privacidade. Para essas “think thanks” de Washington, só uma coalizão de organizações sociais teria credibilidade suficiente para administrar tal sistema: nem, empresas nem governos seria suficientemente confiáveis para tanto.
O valor da privacidade é bastante relativo, como bem resumiu Ezra Klein em seu recente artigo sobre cenários pós-quarentena para a Vox: “Eu me preocupo com minha privacidade, mas não tanto quanto me preocupo com minha mãe”. Analisando os planos para o relaxamento da quarentena divulgados por organizações de pesquisa norte-americanas, tanto à direita quanto à esquerda, Klein encontrou notáveis semelhanças entre as propostas do direitista American Enterprise Institute, do esquerdista o Center for American Progress, e do liberal Safra Center for Ethics da Universidade de Harvard University:
“Até que exista uma vacina, os EUA dependerão de níveis economicamente ruinosos de distanciamento social, de um estado de vigilância digital de tamanho e escopo chocantes ou de um aparelho de teste em massa de tamanho e intrusividade ainda mais chocantes”.
Os planos dos três “think thaks” apresentam na fase inicial um período de bloqueio nacional como este em que nos encontramos agora – no qual o distanciamento social extremo é implantado para “achatar a curva” e a capacidade de saúde e testes é aumentada para “elevar a linha”. A fase dois começa após períodos que variam de 45 dias a três meses, que relaxam mas não terminam com o distanciamento social, para implementar testes e vigilância digital em larga escala.
Os planos preveem um estado de vigilância digital de pandemia com aplicativos de celular que rastreiam todos os nossos movimentos. Não por acaso a joint venture Apple/Google acaba de ser anunciada, copiando o que a Huawei já vem fazendo na China e oferecendo aos seus usuários em todo o planeta há algumas semanas. Assim, quem tiver contato com alguém confirmado para Covid-19 será alertado e “convidado” a um período de quarentena social. Na China, as pessoas já digitalizam códigos QR para embarcar no transporte coletivo, ir ao mercado ou até sair de casa. O rastreamento por GPS pode ser usado para impor quarentena àqueles que testam positivo com a doença, como já é feito em Taiwan.
A visão conjunta da Apple e do Google está clara em seu comunicado:
“Várias autoridades de saúde pública, universidades e ONGs de todo o mundo vêm fazendo um trabalho importante para desenvolver a tecnologia de rastreamento de contato opt-in. Para promover essa causa, a Apple e o Google lançarão uma solução abrangente que inclui APIs (Application Programming Interface) e tecnologia no nível do sistema operacional para auxiliar na ativação do rastreamento de contatos. Dada a necessidade urgente, o plano é implementar esta solução em duas etapas, mantendo fortes proteções à privacidade do usuário.
Primeiro, em maio, as duas empresas lançarão APIs que permitem a interoperabilidade entre dispositivos Android e iOS usando aplicativos de autoridades de saúde pública. Esses aplicativos oficiais estarão disponíveis para os usuários baixarem em suas respectivas lojas de aplicativos.
Segundo, nos próximos meses, Apple e Google trabalharão para habilitar uma plataforma mais ampla de rastreamento de contatos baseada em Bluetooth, incorporando essa funcionalidade nas plataformas subjacentes. Essa é uma solução mais robusta que uma API e permitiria a participação de mais indivíduos, se eles optarem por participar, além de permitir a interação com um ecossistema mais amplo de aplicativos e autoridades governamentais de saúde. Privacidade, transparência e consentimento são de extrema importância nesse esforço, e esperamos criar essa funcionalidade em consulta com as partes interessadas. Publicaremos abertamente informações sobre nosso trabalho para outras pessoas analisarem”.
Os obstáculos políticos para essas medidas no Ocidente são maiores do que os tecnológicos. Pesquisas nos EUA revelaram que 70% dos republicanos e 46% dos democratas são contra o uso de dados de celular para impor ordens de quarentena.
O plano do Center for American Progress para responder a essas preocupações traz as organizações da sociedade civil a posição de protagonistas:
A entidade que hospeda os dados deve ser uma organização confiável e sem fins lucrativos – não empresas privadas de tecnologia ou o governo federal. O aplicativo poderia ser desenvolvido para uma entidade sem fins lucrativos de saúde puramente pública, como a Associação de Funcionários Estaduais e Territoriais de Saúde, que representa funcionários estaduais de saúde e hospedaria os dados. O congresso ou fundações poderiam fornecer financiamento para desenvolver e operar a tecnologia. Proteções adicionais devem incluir o seguinte:
– A quantidade de dados necessários e compartilhados deve ser minimizada
– Este sistema deve ser transparent
– Os dados devem ser coletados, protegidos e armazenados nos Estados Unidos
– Os dados devem ser excluídos automaticamente a cada 45 dias
– O compartilhamento de dados com o governo federal, exceto os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), deve ser proibido
– O compartilhamento de dados com órgãos governamentais estaduais e locais que não sejam órgãos de saúde pública deve ser proibido
– O compartilhamento de dados com terceiros e a venda de dados devem ser proibidos
– Quaisquer dados compartilhados publicamente devem ser anonimizados
A proposta do direitista American Enterprise Institute não entrega tanto controle social nas mãos da tecnologia ou de organizações sociais, como seria de se esperar. Prevê um aumento da testagem a níveis impraticáveis para países como o Brasil -e mesmo para os EUA no curto prazo. Aposta em uma espécie de vai-e-vem entre o confinamento extremo e formas mais leves de distanciamento social, para não deixar a economia sufocar completamente, até que uma vacina seja liberada para uso em larga escala, o que não vai acontecer em menos de um ano e meio. Nesse período, a cada aparente vitória contra o crescimento da doença, o relexamento das medidas leva a uma segunda onda de crescimento da pandemia, como já se observou em Cingapura, por exemplo.
Pior: esses cenários pressupõem um tipo de liderança e de diálogo que parece difícil nos EUA e impensável no Brasil. Quem vai se unir para liderar esse esforço? Donald Trump e Bill Gates? Nancy Pelosi e George Soros? E no Brasil? Bolsonaro e o criador tupiniquim do Facebook Eduardo Saverin? Rodrigo Maia e o maior filantropo brasileiro Elie Horn? E quais organizações sociais poderiam administrar esses dados? A Ordem do Advogados do Brasil, o Conselho Regional de Medicina e o Conselho Reagional de Engenharia e Arquitetura teriam estofo e apoio público para tanto?
Para dar mais cor a esses cenários de monitoramento, compartilho abaixo o vídeo produzido na China pelo blogueiro e professor de Tai Chi George Thompson. Com um agradecimento especial ao meu amigo Alfred Bilik, que compartilhou comigo, hoje de manhã, o material que serviu de base para este texto.